A
teoria kantiana do espaço e do tempo ainda estava imbuída daquela confusão de
perspectivas filosóficas e científicas, que procurava subordinar o conhecimento
positivo a categorias puramente especulativas.
O
profundo desvio do racionalismo kantiano foi de ordem metodológica, isto é, a
aplicação da técnica de análise matemático-formal era feita concomitantemente
com a técnica de síntese genético funcional, sem discriminação alguma dos
respectivos domínios. O método crítico, portanto, resulta desses dois
instrumentos, embora o filósofo em questão não percebesse o dualismo
metodológico de seu sistema.
Tais
concepções levam-nos a afirmar que Kant, na Crítica da Razão
Pura, usa indistintamente duas técnicas de exposição, pois ora ataca o
problema do espaço sob o aspecto da dimensão psicológica, ora sob o aspecto da
dimensão lógica. Daí seu caráter de extremo teor crítico. O resultado de todas
essas formulações kantianas é que o argumento transcendental sobre o caráter
apriorístico do espaço decorre da impossibilidade psicológica de representação
dos objetos sem o receptáculo a eles correspondente.
De
outro modo, o argumento se torna lógico-transcendental, desde que a referida
categoria se transforma em condição necessária que torna possível a atividade
perceptiva ou sensorial.
São
necessárias precisamente aquelas condições sem as quais a nossa experiência se
tornaria impossível.
Ora,
o espaço, como o tempo, constitui condição apriorística da possibilidade dos
processos representativos
do mundo exterior. Daí a conclusão de que ambas categorias se reduzem à forma
da intuição pura que, por sua vez, constitui o fundamento da experiência.
O método de Immanuel Kant é a "crítica", isto é, a análise reflexiva.
Consiste em remontar do conhecimento às condições que o tornam eventualmente
legítimo. Em nenhum momento Kant duvida da verdade da física de Newton, assim
como do valor das regras morais que sua mãe e seus mestres lhe haviam ensinado.
Não estão, todos os bons espíritos, de acordo quanto à verdade das leis de
Newton? Do mesmo modo todos concordam que é preciso ser justo, que a coragem
vale mais do que do que a covardia, que não se deve mentir, etc...
As verdades
da ciência newtoniana, assim como as verdades morais, são necessárias (não
podem não ser) e universais (valem para todos os homens e em todos os tempos).
Mas, sobre que se fundam tais verdades?
Em que condições são elas racionalmente
justificadas? Em compensação, as verdades da metafísica são objeto de
incessantes discussões. Os maiores pensadores estão em desacordo quanto às
proposições da metafísica. Por que esse fracasso?
Os juízos rigorosamente verdadeiros, isto é, necessários e universais,
são a priori, isto é independentes dos azares da experiência, sempre
particular e contigente.
À primeira vista, parece evidente que esses juízos a priori são juízos
analíticos.
Juízo analítico é aquele cujo
predicado está contido no sujeito. Por
exemplo: um triângulo é uma figura de três ângulos: basta-me analisar a própria
definição desse termo para dizê-lo.
Os juízos sintéticos são aqueles cujo atributo enriquece o
sujeito (por exemplo: esta régua é verde), são naturalmente a posteriori;
só sei que a régua é verde porque a vi.
Eis um conhecimento sintético a posteirori que nada tem de
necessário (pois sei que a régua poderia não ser verde) nem de universal (pois
todas as réguas não são verdes).
Entretanto, também existem (este enigma é o ponto de partida de Kant)
juízos que são, ao mesmo tempo, sintéticos e a priori!
Por exemplo:a soma dos ângulos de um triângulo equivale a dois retos.
Eis um juízo sintético (o valor dessa soma de ângulos acrescenta algo à
idéia de triângulo) que, no entanto, é a priori. Assim não há necessidade de uma constatação
experimental para conhecer essa propriedade. Tomo conhecimento dela sem ter
necessidade de medir os ângulos com um transferidor. Faço-o por intermédio de
uma demonstração rigorosa. Eu demonstro o valor da soma dos ângulos do
triângulo fazendo uma construção no espaço.
Mas por que a demonstração se opera tão bem em minha folha de papel
quanto no quadro negro... ou quanto no solo em que Sócrates traçava figuras geométricas para um escravo? É
porque o espaço, assim como o tempo, é um quadro que faz parte da própria
estrutura de meu espírito.
O espaço e o tempo são quadros a priori,
necessários e universais de minha percepção (o que Kant mostra na primeira
parte da Crítica da Razão Pura, denominada Estética transcendental.
Estética significa teoria da percepção, enquanto transcendental significa a
priori, isto é, simultaneamente anterior à experiência e condição da
experiência). O espaço e o tempo não são, para mim, aquisições da experiência.
São quadros a priori de meu espírito, nos quais a experiência vem se
depositar. Eis por que as construções espaciais do geômetra, por mais
sintéticas que sejam, são a priori, necessárias e universais.
Mas
o caso da física é mais complexo. Aqui, eu falo não só do quadro a priori da
experiência, mas, ainda, dos próprios fenômenos que nela ocorrem. Para dizer
que o calor faz ferver a água, é preciso que eu constate. Como, então, os
juízos do físico podem ser a priori, necessários e universais?
É porque, responde Kant, as regras, as categorias, pelas quais
unificamos os fenômenos esparsos na experiência, são exigências a priori
do nosso espírito.
Os fenômenos, eles próprios, são dados a posteriori,
mas o espírito possui, antes de toda experiência concreta, uma exigência de
unificação dos fenômenos entre si, uma exigência de explicação por meio de
causas e efeitos.
Essas categorias são necessárias e universais.
O próprio
Hume, ao pretender que o hábito é a causa de nossa crença na causalidade, não
emprega necessariamente a categoria a priori de causa na crítica que nos
oferece? "Todas as intuições sensíveis estão submetidas às categorias como
às únicas condições sob as quais a diversidade da intuição pode unificar-se em
uma consciência". Assim sendo, a experiência nos fornece a matéria de
nosso conhecimento, mas é nosso espírito que, por um lado, dispõe a experiência
em seu quadro espacio-temporal (o que Kant mostrará na Estética
transcendental) e, por outro, imprime-lhe ordem e coerência por intermédio
de suas categorias (o que Kant mostra na Analítica transcendental).
Aquilo a que denominamos experiência não é algo que o espírito, tal como cera
mole, receberia passivamente. É o próprio espírito que, graças às suas
estruturas a priori, constrói a ordem do universo. Tudo o que nos
aparece bem relacionado na natureza, foi relacionado pelo espírito humano.
É a
isto que Kant chama de sua revolução copernicana. Não é o Sol, dissera
Copérnico, que gira em torno da Terra, mas é esta que gira em torno daquele.
O
conhecimento, diz Kant, não é o reflexo do objeto exterior. É o próprio
espírito humano que constrói - com os dados do conhecimento sensível - o objeto
do seu saber.
Também em física, eu digo que o aquecimento da água é a causa necessária
de sua ebulição (se não houvesse aí senão uma constatação empírica, como
acreditou Hume, toda ciência, enquanto verdade necessária e universal, estaria
anulada). Como se explica que tais juízos sintéticos e a priori
sejam possíveis?
Na terceira parte da obra de Kant, Crítica da Razão Pura, na dialética
transcendental, Kant se interroga sobre o valor do conhecimento metafísico.
As análises precedentes, ao fundamentar solidamente o conhecimento, limitam o
seu alcance. O que é fundamentado é o conhecimento científico, que se limita a
por em ordem, graças às categorias, os materiais que lhe são fornecidos pela
intuição sensível.
No entanto, diz Immanuel Kant, é por isso que não conhecemos o fundo das
coisas. Só conhecemos o mundo refratado através dos quadros subjetivos do
espaço e do tempo. Só conhecemos os fenômenos e não as coisas em si ou noumenos.
As únicas intuições de que dispomos são as intuições sensíveis.
Sem as
categorias, as intuições sensíveis seriam "cegas", isto é,
desordenadas e confusas, mas sem as intuições sensíveis concretas as categorias
seriam "vazias", isto é, não teriam nada para unificar. Pretender
como Platão, Descartes ou Spinoza acreditam que a razão humana tem intuições
fora e acima do mundo sensível, é passar por "visionário" e se iludir
com quimeras: "A pomba ligeira, que em seu vôo livre fende os ares de cuja
resistência se ressente, poderia imaginar que voaria ainda melhor no vácuo. Foi
assim que Platão se aventurou nas asas das idéias, nos espaços vazios da razão
pura. Não se apercebia que, apesar de todos os seus esforços, não abria nenhum
caminho, uma vez que não tinha ponto de apoio em que pudesse aplicar suas
forças".
Entretanto, a razão não deixa de construir sistemas metafísicos porque
sua vocação própria é buscar unificar incessantemente, mesmo além de toda
experiência possível. Ela inventa o mito de uma "alma-substância"
porque supõe realizada a unificação completa dos meus estados d'alma no tempo e
o mito de um Deus criador porque busca um fundamento do mundo que seja a
unificação total do que se passa neste mundo...
Mas privada de qualquer ponto
de apoio na experiência, a razão, como louca, perde-se nas antinomias,
demonstrando, contrária e favoravelmente, tanto a tese quanto a antítese (por
exemplo: o universo tem um começo?
Sim pois o infinito para trás é impossível,
daí a necessidade de um ponto de partida. Não, pois eu sempre posso me
perguntar: que havia antes do começo do universo?).
Enquanto o cientista faz um
uso legítimo da causalidade, que ele emprega para unificar fenômenos dados na
experiência (aquecimento e ebulição), o metafísico abusa da causalidade na medida
em que se afasta deliberadamente da experiência concreta (quando imagino um
Deus como causa do mundo, afasto-me da experiência, pois so o mundo é objeto de
minha experiência). O princípio da causalidade, convite à descoberta, não deve
servir de permissão para inventar.
AUTORA: Eneide Pompiani de Moura
Referencia bibliográfica:
Apostila da disciplina Metodologia de Pesquisa Filosófica. Curso de pós-graduação da Universidade Católica de Brasilia. 2012. 36 p.
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