segunda-feira, 4 de junho de 2012

Tese monográfica ou tese panorâmica? Humberto Eco

Para alguns, escrever um texto filosófico é um descompromisso com a metodologia. Escolher um tema pode ainda parecer mais fácil pela abrangencia do conhecimento filosófico e de suas formas interpretativas não convencionais quando comparados com o conhecimento metodológico científico.

Como contribuição trago um texto de Humberto Eco que ajuda a direcionar a reflexão da complexidade que é elaborar um texto filosófico monografico ou de visão panorâmica.

Convido-o a perceber a diferença. 
Paz Profunda
Eneide Pompiani de Moura


Escolha do Tema
Humberto Eco
Tese monográfica ou tese panorâmica?

A primeira tentação do estudante é fazer uma tese que fale de muitas coisas. Se
se interessa por literatura, seu primeiro impulso é escrever algo como A literatura
hoje. Tendo de restringir o tema, escolherá A literatura Italiana do Pós-guerra aos
Anos Sessenta.

Teses desse tipo são perigosíssimas. Estudiosos bem mais velhos se sentem
abalados diante de tais temas. Para quem tem vinte anos, o desafio é impossível.
Ou elaborará uma enfadonha resenha de nomes e opiniões correntes ou dará à
sua obra um corte original e se verá acusado de imperdoáveis omissões. 

O grande crítico contemporâneo Giangranco Contini publicou, em 1957, uma
Literatura Italiana dos Séculos XVIII e XIX (Sansoni Accademia). Pois bem, se se
tratasse de uma tese ele seria reprovado, embora seu trabalho conte com 472
páginas impressas.

De fato, poder-se-ia acusá-lo de descuido ou ignorância por
não haver citado nomes que a maioria considera muito importantes ou de haver
dedicado capítulos inteiros a autores considerados “menores” e breves notas de
rodapé a autores tidos por “maiores”. 

Naturalmente, tratando-se de um estudioso
cujo preparo teórico e argúcia crítica são bem conhecidos, todos compreenderam
que tais exclusões e desproporções eram propositais, e que a ausência era
criticamente muito mais eloqüente do que uma página de crítica impiedosa e
demolidora. 

Mas se a mesma brincadeira for feita por um estudante de vinte e
dois anos, quem garantirá que em seu silêncio esteja muita malícia e que as
omissões substituem páginas críticas escritas alhures - ou que o autor sabia
escrever?

Em teses desse gênero, o estudante costuma acusar os membros da banca de
não tê-lo compreendido, mas estes não podiam compreendê-lo, razão pela qual
uma tese muito panorâmica constitui sempre um ato de orgulho. Não que o
orgulho intelectual - numa tese - deva ser condenado a priori. Pode-se mesmo
dizer que Dante era um mau poeta: mas cumpre dizê-lo depois de pelo menos
trezentas páginas de cerradas análises dos textos dantescos. 

Estas  demonstrações, numa tese panorâmica, não podem ser feitas. Eis por que seria
então oportuno que o estudante, em vez de A literatura italiana do Pós-grerra aos
Anos Sessenta, escolhesse um título mais modesto.
Digo-lhes já qual seria a ideal: não Os Romances de Fenoglio, mas As diversas
Redações de “ll partigiano Johnny”. Enfadonho? É possível, mas como desafio é
mais interessante.

Sobretudo se pensar bem, trata-se de um ato de velhacaria. Com uma tese
panorâmica sobre a literatura de quatro décadas, o estudante se expõe a toda
sorte de contestações possíveis. Poderá o relator, ou um simples membro da
banca, resistir à tentação de alardear seu conhecimento de um autor menor, não
citado pelo estudante? Bastará que os membros da banca, consultando o índice,
descubram três omissões para que o estudante se torne alvo de uma rajada de
acusações, que farão sua tese parecer um conglomerado de coisas dispersas.
Se, ao contrário, ele tiver trabalhando seriamente sobre um tema bastante
preciso, estará às voltas com um material ignorado pela maior parte do juízes.
Não estou aqui sugerindo um truquezinho reles; talvez seja um truque, mas não é
reles, porque exige esforço. Acontece apenas que o candidato se mostra
“esperto” diante de uma platéia menos esperta que ele, e, visto ter-se esforçado
para se tornar esperto, nada mais justo que gozar as vantagens de semelhante
situação.

Entre os dois extremos da tese panorâmica sobre quatro décadas de literatura e
da tese rigidamente monográfica sobre variantes de um texto curto, existem
muitos estados intermediários. Poder-se-ão, assim, determinar temas como A
Neovanguarda Literária do Anos Sessenta, ou A Imagem das Langhe em Pavese
e Fenoglio, ou ainda Afinidades e Diferenças em três Autores “Fantásticos”:
Savinio, Buzzati e Landolfi.

Passando às faculdades científicas, damos um conselho aplicável a todas as
matérias.

O tema Geologia, por exemplo, é muito amplo. Vulcanologia, como tema daquela
disciplina, é também bastante abrangente. Os vulcões do México poderiam ser tratados num exercício bom porém um tanto superficial. Limitando-se ainda mais
o assunto, teríamos um estudo mais valioso: A História do Popocatepetl (que um
dos companheiros de Cortez deve ter escalado em 1519 e que só teve erupção
violenta em 1702). Tema mais restrito, que diz respeito a um menor número de
anos, seria O Nascimento e a morte Aparente do Paricutin (de 20 de fevereiro de
1943 a 4 de março de 1952).

Aconselharia o último tema. Mas desde que, a esse ponto, o candidato diga tudo
o que for possível sobre o maldito vulcão.

Há algum tempo, procurou-me um estudante que deveria fazer sua tese sobre O
Símbolo no Pensamento Contemporâneo. Era uma tese impossível. Eu, pelo
menos, não sabia o que poderia ser “símbolo”: esse termo muda de significado
conforme o autor, e às vezes, em dois autores diferentes, pode querer dizer duas
coisas absolutamente opostas. Não se esqueça que, por símbolo, os lógicos
formais ou os matemáticos entendem expressões privadas de significado, a
ocupar um lugar definido, uma função precisa, num dado cálculo fomalizado
(como ao a e b ou x e y das formulas algébricas); enquanto outros autores
entendem uma forma cheia de significados ambíguos, como ocorre nos sonhos,
que podem referir-se a uma árvore, a um órgão sexual, ao desejo de prosperar,
etc. 

Como, pois, fazer uma tese como semelhante título? Seria preciso analisar
todas as acepções do símbolo na cultura contemporânea, fazer uma lista que
pusesse em evidência as afinidades e discrepâncias dessas acepções, esmiuçarse
sob as discrepâncias se não existe um conceito unitário fundamental,
recorrente em cada autor e cada teoria, e se as diferenças não tornam
incompatíveis entre si as teorias em questão. 

Pois bem, nenhum filósofo, lingüista
ou psicanalista contemporâneo conseguiu ainda fazer uma obra dessa
envergadura de modo satisfatório. 

Como poderá se sair melhor um estudante que
mal começa a terçar armas e que, por precoce que seja, não tem mais de seis ou
sete anos de leitura adulta nas costas? 

Poderia ele, ainda, fazer um discurso
parcialmente inteligente, mas estaríamos de novo no mesmo caso da literatura
italiana de Contini. Ou poderia propor uma teoria pessoal do símbolo, deixando de
lado tudo quanto haviam dito os demais autores: no parágrafo 2.2, todavia,
diremos quão discutível é essa escolha. Conversamos com o estudante em questão. Seria o caso de elaborar uma tese sobre o símbolo em Freud e Jung,
abandonando todas as outras acepções e confrontando unicamente as destes
dois autores. 

Mas descobrimos que o estudante não sabia alemão (e sobre o
problema do conhecimento de línguas estrangeiras voltaremos a falar no
parágrafo 2.5). Decidiu-se então que ele se limitaria ao termo O Conceito de
Símbolo em Peirce, Frye e Jung. 

A tese examinaria as diferenças entre três
conceitos homônimos em outros tantos autores, um filósofo, um crítico e um
psicólogo; mostraria como, em muitas análises sobre estes três autores, se
cometem inúmeros equívocos, pois se atribui a um o significado usado por outro.
Só no final, a título de conclusão hipotética, o condidato procuraria extrair um
resultado para mostrar se e quais analogias existiam entre aqueles três conceitos
homônimos, aludindo também a outros autores de seu conhecimento dos quais
por explícita limitação do tema, não queria e não podia ocupar-se. Ninguém
poderia dizer-lhe que não levará em conta o autor K, porque a tese era sobre X, Y
e Z, nem que citara o autor J apenas em tradução, pois se tratara de simples
menção, para concluir, ao passo que a tese pretendia estudar amplamente e no
original unicamente os três autores citados no título.

Eis aí como uma tese panorâmica, sem se tornar rigorosamente monográfica, se
reduzia a um meio termo, aceitável por todos.

Fique claro, ainda, que o termo “monográfico” pode ter um acepção mais vasta
que a usada aqui. Uma monografia é a abordagem de um só tema, como tal se
opondo a uma “história de”, a um manual, a uma enciclopédia. 

Daí ser também monográfico um tema como O tema do “Mundo às Avessas” 
nos Escritores  Medievais. 

Muitos dos escritores analisados, mas apenas do ponto de vista de um
tema específico, isto é, da hipótese imaginária, proposta a título de exemplo, de
paradoxo ou de tábula, de que os peixes voam, os pássaros nadam, etc. 

Se bem executado, esse trabalho poderia dar uma ótima monografia. 
Mas, para tanto, é preciso levar em conta todos os escritores 
que trataram o tema, em especial os
menores, aqueles de quem ninguém se lembra. 

Assim, tal tese se classificaria
como monográfico-panorâmica e seria dificílima: 
exigiria uma infinidade de leituras. 

Caso se pretendesse fazê-la de qualquer modo, seria então forçoso
restringir o campo: O Tema do “Mundo às Avessas” nos Poetas Carolíngios. 

Um campo restringe-se quando se sabe o que conservar e o que escoimar.

Claro está que é muito mais excitante fazer a tese panorâmica, por que antes de
tudo parece aborrecido ocupar-se durante um, dois ou três anos sempre do
mesmo autor. Mas deve-se ter em mente que fazer uma tese rigorosamente
monográfica não significa perder de vista o panorama. Fazer uma tese sobre a
narrativa de Fenogho significa ter presente o realismo italiano, não deixar de ler
Pavese ou Vittorini, bem como analisar escritores americanos lidos e traduzidos
por Fenogho. Só explicamos e entendemos um autor quando o inserimos num
panorama. Mas uma coisa é usar um panorama como pano de fundo, e outra
elaborar um quadro panorâmico. 

Uma coisa é pintar o retrato de um cavalheiro
sobre o fundo de um campo cortado por um regato, e outra pintar campos, vales e
regatos. Tem de mudar a técnica, tem de mudar, em termos fotográficos, o foco.
Partindo-se de um único autor, o panorama pode afigurar-se um tanto desfocado,
incompleto ou de segunda mão.

Em suma, recordemos este princípio fundamental: quanto mais se restringe o
campo, melhor e com mais segurança se trabalha. Uma tese monográfica é
preferível a uma tese panorâmica. É melhor que a tese se assemelhe a um ensaio
do que a uma história ou a uma enciclopédia.

AUTOR: Humberto Eco

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